quarta-feira, junho 07, 2006

CANÇÃO DA INFÂNCIA

Quando a criança era criança
andava e balouçava os braços.
Queria que o regato fosse um rio
o rio uma corrente
e esta poça o mar.

Quando a criança era criança
não sabia que era criança.
Tudo estava cheio de vida, e a vida era uma só vida.

Quando a criança era criança
não tinha opiniões sobre nada.
Não tinha vícios.
Sentava-se com as pernas cruzadas e de súbito desatava a correr
tinha um remoinho no cabelo
e não fazia caretas quando a fotografavam.

Quando a criança era criança
era o tempo destas perguntas:
Porque sou eu e não sou tu?
Porque estou aqui, e não aí?
Quando começou o tempo, e quando acaba o espaço?

A vida debaixo do sol é apenas um sonho?
Isto que eu vejo, ouço e cheiro
é apenas uma ilusão ou o mundo defronte do mundo?
O mal existe mesmo,
ou são as pessoas que são más?
Como se explica que eu, que sou eu,
não existisse antes de existir,
e que um dia
este que eu sou
não seja mais este que sou hoje?

Quando a criança era criança
engasgava-se com espinafres, ervilhas, arroz doce
e couve-flor
e agora come isso tudo
e não apenas porque tem de comer.

Quando a criança era criança
acordou uma vez numa cama estranha
e agora também acorda algumas vezes.
Achava muitas pessoas bonitas
e agora acha apenas algumas, poucas.
Tinha uma ideia exacta do Paraíso
e ignora mal o imagina.
Não concebia o nada
e agora estremece com a ideia.

Quando a criança era criança
brincava com entusiasmo
e agora
fica igualmente excitada
mas só quando se trata
da sua profissão.

Quando a criança era criança
as uvas caíam nas suas mãos como só as uvas
e ainda caem hoje.
As avelãs faziam-lhe aftas na língua
e ainda fazem.
No cimo de cada montanha desejava
uma montanha mais alta.
E em cada cidade desejava
uma cidade maior.
E ainda é assim.
Chegava às cerejas no topo das cerejeiras
com a mesma exaltação que sente hoje.
Era tímida com os estranhos
e ainda é.
Esperava a primeira neve
e ainda espera.

Quando a criança era criança
atirou um pau a uma árvore como se fosse uma lança
e essa lança ainda oscila na árvore agora.

Peter Handke